terça-feira, 20 de agosto de 2013

Discretamente





Fui ao dentista pra fazer um canal. Sei que é normal.
O problema é que eu não sou normal.

Depois de anestesiada, do queixo até o olho esquerdo, a dentista começa com o motor a desgastar o dente.
Até aí tudo dentro do esperado.

Chega até os canais, que na radiografia eram três, só encontra dois.
Depois de muita procura, conclui que um deles tinha se unido ao segundo.
Mumificado pode-se assim dizer, assim como a dona do canal.

Até esse momento não estava calma, porque em dentista ninguém fica calmo.
Portanto pensei: " sou igual aos outros!"

Fomos então para a segunda etapa do tratamento.
A obturação dos canais.

Tenho que explicar uma nova técnica de proteção.
Imagine um balão de festa infantil.
Fure, corte o que sobrou em círculo de mais ou menos 5cm de raio.
No meio faça um furo quadradinho com um metal arrematando essa borda.
Pois é, isso foi anexado ao meu dente.
Explicou-me a dentista que era para as desgraçadas das agulhinhas não rolarem pela minha garganta.

Ao anexar ao meu dente restou círculo.
Tampava as minhas duas narinas e minha boca também.
Não, não morri.
Esperneei, me debati.
A dentista entendeu que estava ficando perigoso fazer o canal.

Bom, retirou das narinas as sobras do círculo.
Como tenho desvio de septo sobrou uma narina apenas para respirar.
Pelo menos, não morreria com falta de ar, nem com as malditas agulhinhas rolando pela garganta.

Fiquei quieta por alguns instantes.
Mas, comecei a imaginar que por trás do círculo havia um cano que ia até minha garganta.
Deu vontade de vomitar.
A dentista havia falado que eu levantasse a mão se algo não estivesse bem.
Levantei as mãos, os pés, me balancei, gritei e sacudi os cabelos.
Fui discreta!!!

Então ela parou o tratamento e falou:
- D. Aninha é normal. A senhorinha precisa se acostumar. Fique tranquilinha. Tudo dará certinho. Na próxima vez, vou ter que demorar mais um pouquinho. Tá?

É ruim, hein!

Fantasia





Quando tinha uns 7 anos, a avó de uma amiguinha virou-se para mim e disse:- Você acredita em Papai Noel? Que bobagem! Isso tudo é uma grande mentira!

A não existência do Papai Noel poderia ser bobagem mesmo, mas minha mãe inventar tal história era grave!

Essa foi a primeira grande decepção da minha vida.
Mas isso tudo passou, como tudo passa nessa vida.
Os natais na casa dos meus pais sempre foram maravilhosos.
No dia 24 jantávamos juntos e depois íamos pra casa da nossa vizinha.
Lá conheci comidas exóticas e principalmente as músicas de Altemar Dutra.
Boleros cafonas,que provavelmente jamais ouviria em qualquer outro lugar.

No dia 25 era a vez de ir pro almoço na casa do meu avô paterno.
Uma maravilha!
Lembro do encontro com primas e primos. Do cheiro de carne assada. Das tias tocando piano. Das cantigas de roda e principalmente do imenso mistério que era a casa de meu avô.
Tinha um porão sinistro com couro de uma cobra enorme na parede.
Meu avô contava que ele havia caçado.
Eu que tinha uma imaginação delirante, pensava que Marcelino (do filme Marcelino pão e vinho) surgiria para mim naquele pequeno paraíso misterioso.
A saudade daquele tempo se apagou.
A vida vai seguindo o caminho.
Às vezes bons, outros nem tanto
Mas naquela época era fantasia e diversão.
Não precisava mesmo do Papai Noel.

Meu Olhar





De um modo geral não gosto dos números primos.

Exceto pelo número dois é sempre ímpar.
Que coisa mais solitária!

Um número que é dividido por um e por si mesmo é egoísta!
Ser dividisível por um  qualquer número é.
Combinemos então que não é grande feito.
Portanto, o primo só dialóga consigo mesmo
.


Os ímpares são também enjoadinhos.
Mas, consigo separá-los em grandes amigos, conhecidos e antipáticos.

Voltemos então ao um que é ímpar e primo também.
Que cara sem graça!
Se somado ao par vira ímpar, se somado ao ímpar vira par.
Se multiplicado por qualquer número dá como resultado o próprio número.
Se for o divisor também.
Ou seja, igual ao irmão pequeno jogando bola com adultos: "café com leite".
É apenas meu conhecido.

O três é zangado apesar de dividir números cujo algarismos somados deem três ou múltiplos de três. É fechado, quase uma tempestade.
Prefiro nem estar junto. Antipático mesmo!

O cinco por outro lado é solar. É a exceção entre os primos e ímpares.
Divide todos os números que terminam em zero e em cinco.
Sou amiga dele e tenho afeto.

Possuo observação pra cada número.
Mas é apenas sensação.
Não tem a ver com matemática.
É igual ao meu olhar sobre os humanos.

3º Andar





Moro no segundo andar de um prédio de três andares.
Mudou-se para o apartamento em cima do meu, família composta por um casal e duas crianças.
Ele alemão, ela brasileira. As crianças naturalmente são uma mistura dos dois. Tem entre 7 e 9 anos.

Pra isso foi necessária uma obra que durou de janeiro a julho.
Quebram todos os ladrilhos da cozinha e dos banheiros. Derrubaram paredes. Fizeram um buraco na laje. Abriram 7 buracos de ar-refrigerado para todos os cômodos.
A marcenaria dos armários embutidos foi feita no local. Escada de ferro esmerilhada também no local.
No final da obra o chão do apartamento foi todo raspado com aquele rolo compressor acoplado a um motor.
E claro, passaram sinteco dos mais fedorentos.

Inferno na terra! Ou melhor, inferno no segundo andar.

Bom, respirei fundo na mudança deles. Enfim a barulheira iria acabar!
Que tola eu!
Minha sina está só no início.

Pra começar as crianças acham que o apartamento é um campo de futebol. Correm do quarto até a sala com pés de chumbo.
Meu lustre da sala balança qual palmeira ao vento.
Além disso os dois estudam acordeon todas as tardes.

Se alemão já é uma língua ríspida, imagine em brigas.
Pois é, assim é.
Um horror!

Não sei bem se o pai pensa que nós somos terceiro mundo e aqui pode tudo ou se é mal-educado mesmo.
Já quebraram o portão do prédio, o interfone e sacodem a toalha de mesa na janela.
Os farelos de comida voam junto com garfos esquecidos, no toldo do vizinho.

Meu marido só os chama de "os selvagens".
Sei lá, tá feia a coisa!

Primeiro Embate


- Vó, pare de fazer isso! assim você me faz pagar mico. Esse pedido me remeteu a um universo muito particular.
Cheguei a conclusão que pagar mico é minha especialidade.

Quando meus filhos eram pequenos, morávamos em Jacarepaguá, zona oeste do Rio, onde alguns hábitos permaneciam puros.
No carnaval era comum as crianças se vestirem de bate-bola.
Uma fantasia composta de máscara, capa e uma bola amarrada numa vareta.
A brincadeira consistia em sair com grupo de amigos e no encontro com outro grupo bater a bola no chão.
Ninguém sabia quem estava por debaixo das máscaras.
Ganhava aquele que assustava mais.
Numa segunda-feira de carnaval, os dois mais velhos resolveram se juntar aos amigos e tornar a brincadeira um fato.
Imagino eu que o fato mais importante de suas vidas naquela época.
Acontece que o mais novo dos filhos também quis participar.
Mas ele só tinha três anos!
Como deixá-lo andar pelas ruas do bairro sozinho?
Mas como não deixá-lo participar de tal evento?
Resolvi acompanhá-los sem fantasia é claro.
A cena era a seguinte:
Todos andando pela rua.
Eu cinco passos atrás de mãos dadas com o mais novo.
O primeiro grupo que encontraram, as bolas começaram a bater no chão.
Mas então, cinco passos depois eu apareço.
A identidade do grupo revelada com a minha presença, esvaziou a brincadeira.
Perderam o primeiro embate da vida.
Que ridícula, coitados!

Incômodo





Ganhei um móvel de um tio logo que casei.
É uma cômoda que ele dizia ser muito antiga e de jacarandá.
Não combinava muito com meus móveis, mas procurei utilizá-la como um objeto excêntrico.
Coloquei nas gavetas algumas toalhas de mesa, porta retrato para enfeitar.
Depois de algum tempo troquei-a de lugar.
No meu quarto aproveitei como móvel de camisolas e bugingangas. A televisão ficava em cima.
De tempos em tempos achava outra forma de uso para essa peça.

Muitos anos passados e algumas trocas de lugares, comecei a bolar uma estratégia para me livrar da cômoda.
Perguntei aos filhos se queriam usá-la em suas casas.
Tentei convencer ao marido que ia ficar bacana como mesa de cabeceira.
Nenhum deles aceitou minha ideia.
Rodei com a peça pela casa toda, não achei outra alternativa que não fosse colocá-la no meu atelier.
O afeto pelo meu tio é verdadeiro, mas o antônimo supera : cômoda, incômoda!

Infinito




Passa por mim um casal idoso.
- Você é o primeiro amor da minha vida!
- É mesmo?
- Sim, você é meu primeiro amor!
Será que começou há tantos anos quanto a idade diz?
Será que existiram outras histórias antes?
Será que só agora se encontraram?

Continuei andando sem saber há quanto tempo.
E no pequeno espaço que percorri, percebi que o tempo de amar é infinito.

Pedido





Dona Branca tem 94 anos. Lúcida, porém muito quieta. Cabelos branquinhos, óculos de lentes grossas, bengala sempre companheira.
Abaixo-me para cumprimentá-la. Ela reconhece, sorri e diz:
- Menina! que cabelo lindo!
Eu agradeço e sento ao lado pra conversar um pouco. Parece solitária.
O aparelho de surdez indica que preciso falar alto. Ela repete cada uma das minhas palavras mexendo os lábios.
Pergunto como vai de saúde, o que anda fazendo.
Vai muito bem, toma apenas remédio para pressão.
Mora sozinha, faz a própria comida, arruma a casa.
Conta sobre as notícias que ouviu no rádio.
Diz que vê só a novela das seis horas, porque não quer incomodar os vizinhos com o som da tv no máximo do volume.
Fala da bisneta com alegria. De como está feliz em ver a família reunida.
Já no final de nossa conversa me conta o seu mais profundo desejo:

- Ana, a velhice me deixou apenas um quinto dos prazeres da vida.
Gostava de ler, não posso mais porque não enxergo. Gostava de ouvir música, não posso mais porque não escuto. Gostava de caminhar, não posso mais porque as pernas não me levam.
Se eu pudesse pedir alguma coisa da vida, pediria que a vida acabasse agora.

Palavras fugiram da minha boca:
- Dona Branca, faça isso comigo não. Toda vez que suponho a vida vivida, penso na senhora.

Acho que pedi demais!

Aparência





Uma parente idosa tem mania de pedir ao meu filho autógrafos genéricos. Em confiança assim ele faz: "Um abraço" se for pra homem " Um beijo´" se for pra mulher.
Minha parente completa com o nome da pessoa.
O mais interessante é que ninguém pede esse autógrafo, ela oferece.

Um dia fui visitá-la .
Como era rápido, vesti uma calça de moleton , uma camiseta qualquer, sandálias de borracha.
Acontece que eu havia quebrado um dente da frente e era impossível sorrir antes do dentista completar o tratamento.
Essa é uma descrição do meu estado. Total esculhambação porque seria uma visita rápida.

Estacionei o carro na garagem do apartamento dela, subi rapidamente o elevador torcendo pra não encontrar nenhum vizinho.
Depois de um café foi impossível não atender ao pedido de levá-la ao shopping para trocar um celular.
Tenho problemas em dizer não.

Lá fomos nós. A ideia era entrar e sair o mais ligeiro possível.
Assim que a questão estava resolvida, ela me disse que tinha que passar numa loja de departamento pra entregar o autógrafo pra vendedora da loja de cd.
Tenho problemas em dizer não.

Ninguém tem ideia do meu sofrimento subindo aquela escada rolante com a sensação de ter dois metros de altura estar de pijama e desdentada.
Esse foi o menor dos meus problemas.

Ao chegar na seção a mocinha não estava, minha parente não sabia o nome dela e nem a aparência. Mandou chamar a gerente e falou assim:
- Sabe o que é, estou com autógrafo do filho da minha parente. Você conhece?
A gerente fez cara de alface e disse que não conhecia.
- Conhece sim!!! quer ver? Cantou uma música inteirinha do meu filho
Eu, nessa altura, já estava escondida atrás de uma gôndola apavorada que ela me apontasse.
A gerente continuou com cara de alface.

Depois de algum tempo descobriram que a tal mocinha estava na lanchonete no andar de baixo.
Lá vou eu de novo naquela maldita escada rolante.

Me escondi atrás de uma pilastra enquanto minha parente conversava com a mocinha.
Não sou muito de rezar, mas dessa vez eu rezei pra ela não me dedurar.
Mas não adiantou. Minha reza foi em vão.
Ela me apontou, me chamou.
Tenho problemas em dizer não.
Fui!
E aí, aí sim, foi o ápice pra alguém de pijama e desdentada
A mocinha gritou a plenos pulmões:
- MINHA SOGRA!!!!!!

Meninas





Minha mãe adora ir até a Caixa Econômica. Não acredita no extrato bancário dito pelo telefone. Não acredita no extrato que vem pelo correio, muito menos dos que saem na boca da maquininha da agência.
Tem que conversar com o gerente.

Como já está com idade avançada, um dos filhos sempre faz companhia.
Fui a escalada da vez num certo dia.
Não é uma visita rápida, porque moro a uma distância razoável da casa dela. Dedico o dia a essa missão.

A família geneticamente fala demais. Só pode ser genético, porque não escapa um único ser desse descontrole.
Mamãe é a líder.

Chegamos na agência, começamos a subir os degraus até o segundo andar. Foram necessárias algumas horas.
Os degraus não a afetaram em nada. Mas havia pessoas subindo e descendo. Todos conhecidos dela.
Portanto, conversas no meio da escada renderam parte do tempo.
Mas eu sempre juro que terei paciência! E tive.

Chegamos até o gerente.
Assim ela me apresenta:
- Essa é a minha filha mais velha não é linda?
Gerente:
- O que vale é a beleza interior!

Perdia a paciência!

Muito Prazer





Nasci Ana Amelia.
Ana da minha avó materna e Amelia da avó paterna.

Descobri que a história era contada pela metade.
Meu pai um torcedor fiel do Fluminense, se aproveitou da coincidência e deu a mim o nome da mulher do goleiro Marcos.
Anna Amelia de Queiroz Carneiro de Mendonça , poetisa, tradutora e feminista carioca.

Se aventurar pela vida com esse nome pode levar a vários tropeções.

Começa, no mínimo, tendo que ser poetisa e torcedora do Fluminense.

O nome é sempre o número 1 ou 2 da lista de chamada da escola.
Dependendo do seu desempenho é um desastre.

Fazer uma bobagem e escutar pela proa um Ana Ameeeeeeeeelia, dói até a alma.

Além disso, tem aquela que era mulher de verdade. Sabia passar, lavar e cozinhar segundo Mário Lago.
Nenhuma dessas qualidades me interessavam.

Ana.
Foi assim que meu namorado me chamou pela primeira vez. É assim que me chama depois de 39 anos.

Tão mais simples. É um bilhete de ida e volta.

Ana, é assim que meus três filhos me conhecem e assim eles me apresentam.
E um deles, às vezes, me chama de moça. Diz que me escreveu.

Pelas conversas que tenho com os três, a carta foi escrita em comum acordo

Pão com marmelada





Conheci uma menina.
Tinha como merenda pão com marmelada e café com leite na garrafinha de plástico.
Pior que esse lanche só lanche nenhum.

Foi apresentada na cantina da escola que estudava a sanduíche de queijo quente com refrigerante.
Devia ser muito bom, pois todos comiam e além disso não pagavam.
Resolveu experimentar.
Comeu, adorou e viu o dono da cantina anotar num caderninho o seu nome.
Nunca mais iria comer aquele pão com marmelada!

Foi assim durante todo mês.

Mas o dono da cantina não anotava à toa.
Cobrou tim por tim, todos os sanduíches e refrigerantes consumidos naquele tempo.

A menina, que não tinha dinheiro algum, juntava tim por tim, toda moedinha que ganhava.
Parecia que nem todas as moedinhas do mundo iriam pagar sua dívida com o dono da cantina.

Um dia o pai da menina a viu contando as danadinhas.
- O que é isso filha?
- pai, quero contar um segredo.
- Qual é?
- devo muitas moedinhas ao dono da cantina, mas não conte para mamãe!

Eu estava na cantina quando a mãe da menina chegou.
Tampei os ouvidos, não queria ouvir a bronca daquela senhora.

Tive pena da menina.
Ela sabia que a mãe poderia dar aquela bronca.
O que não imaginava era que o pai não guardaria o seu segredo.

Sonho



Ganhei de Natal ou aniversário, não lembro bem, a coleção de livros da Llansol

Maria Gabriela Llansol, escritora portuguesa.

Presente de um dos filhos.
- Mãe a escritora é a sua cara. Ela olha a vida exatamente como você

Não tive tempo de ler.

Meu filho mais novo levou um dos cinco exemplares.

A resposta dada quando perguntei se havia gostado:
- Não entendi nada.

Entre um "mãe a escritora é a sua cara" e um "não entendi nada" está um ser que até hoje não entende bem quem é.

O resultado disso foi uma dúvida maior e o medo de começar a ler os livros.

Comecei!

Escolhi o volume pelo título assim como a autora faz quando o escreve.

"Inquérito às Quatro Confidências"

Confesso que até a página 27 não entendi a narrativa muito bem.
Mas não importa o meu não entendimento.

Diante desse trecho e assim mesmo escrito no livro:

"___________________________ vi hoje o medo numa andorinha:

prefiro vê-lo em mim própria. Uma andorinha parada, no canto angular da cozinha com o olho vidrado de impotência, não é um aspecto da natureza desmunida que eu queira ver...."
Percebi!
É um quadro pronto.

Nem eu nem ninguém precisa entender a narrativa.
Está lá para sonhar.

Moça





Meu pesadelo é ser fotografada.
Uma das minhas noras me disse que eu não me escondesse da câmera e sim fosse de encontro a ela.
A outra nora que eu deveria abrir ligeiramente a boca tal qual fazem as atrizes.

Nada disso adianta.

Fico apavorada e apareço nas fotos apavorada.
Sou mais velha do que penso.
Sou mais gorda do que penso.
Sou mais feia do que penso.

Mas penso que todos pensam que o que eu penso é bobagem.

Cortejar





Tenho uma prima que era um espetáculo!
Isso quando ela tinha 16 e eu 13 anos.

Fomos passar uns dias juntas num feriado prolongado.
Juntas não. Ela no palco e eu na plateia.

O corpo da minha prima era escultural.
O sorriso brilhava muito, com charme, apesar de um dente da frente ligeiramente quebrado.
Tinha um cabelo sedoso e brilhante que corria até a cintura.
Tocava violão com maestria.

Quando ela chegava o tempo parava.
Os passarinhos se calavam.
Os garotos não respiravam

Foi então convidada para uma festa num dia à noitinha. Eu não poderia ir.
Na minha idade era tal a minha insignificância que nem esboçar reclamação eu podia.

Mas, o mais extraordinário me aconteceu naquela noite.
Pela primeira vez minha prima dirigiu a palavra a mim.
Perguntou se eu queria vê-la se arrumando.

Sentei na beirada da cama trêmula de emoção para apreciar a deusa virar diva.

Ela começou pelos olhos.
Passou sombra, depois lápis e por fim o rímel.
A boca contornou com baton vermelho.
Fez uma pequena pausa e olhou pra mim.
Achei que queria algum comentário meu.

Quando estava tentando balbuciar algo ela apontou para cima da cama.
Entendi que era para entregar uma pequena bolsa ao meu lado.

Então, minha prima, tirou de dentro da bolsa um maço de cigarro.
Acendeu e me perguntou:
- Você fuma?
Eu:- não...
Ela: - Que boboca!

Saiu para a festa e eu fui dormir com a certeza que nunca mais seria a mesma.

Ai meus sais!



A manhã sem internet, foi diferente.
Não lembrava como era a vida assim.
Comecei lendo um bilhete manuscrito, do meu marido, que havia saído. Sim, essa forma de comunicaçao ainda existe!
Bom, veio então o segundo passo....o que fazer?
Sentei em frente ao micro e tentei, naturalmente!
Todas as mensagens irritantes de que estava fora do ar, surgiram na minha tela.

Ai, meus sais!!!

Tomei café, acendi um cigarro e comecei a jogar paciência. Haja paciência!
Vez em quando, clicava num site. Lá vinham aquelas mensagens irritantes.



Minha neta acordou e eu avisei que estávamos sem internet.
O rosto dela se transformou e a frase foi imediata: - Como assim?
E ainda perguntou a seguir :- Como será a minha vida hoje?

Eu cheia de sabedoria, tentando manter um semblante sereno falei: - Querida, o mundo existia sem internet!
Não deixei transparecer a minha irritação. Afinal, sou uma educadora, não posso sair dando bico no micro.

Depois de alguns minutos em estado de choque, meu e dela, resolvemos terminar a nossa manhã fazendo atividades de outro século.

Ela foi brincar com as amiguinhas na rua e eu fui ler jornal impresso.

Uma Toalha





Queria um ateliê para trabalhar. Mas é caro.

Num anúncio de jornal achei bem pertinho de casa um ateliê coletivo.
Era tudo que precisava.
Barato e dividir espaço com artistas diferentes parecia a solução.
Levei fotos dos meus trabalhos esperando ser aceita.
Sim, porque artista plástico passa por um vestibular cada vez que mostra seu trabalho.
O dono do ateliê coletivo (sempre tem um dono) olhou as fotos com atenção.
Repassou cada uma  com cuidado.
Aqueles minutos pareciam uma eternidade. Mas eu só queria dividir um pedacinho de chão pro meu cavalete!
Depois de alguns instantes, ele voltou-se pra mim e disse: - esse parece uma toalha de mesa
Voltei pra casa com a sensação que, o pequeno poder pode acabar com a carreira de qualquer um.
Que cara chato!!!

Quarteirão





Tenho problemas com placas de trânsito!

Tem uma seta pra direita eu entro. Porque tem que ser duas ruas depois?
Pois é, por isso me perco em qualquer lugar que vou.

Grávida de 5 meses de meu filho mais novo, fui visitar a nossa empregada que estava internada em Botafogo.

Na saída dei carona pra filha e pra mãe dela. Deveria deixá-las na Praça da Bandeira.
Isso foi em torno das 4 horas da tarde.

Peguei o viaduto, túnel Santa Bábara e cheguei até uma maldita placa de trânsito com uma seta. Virei é claro!

Estava então, na Av, Brasil direção São Paulo.
As duas, sentadas no banco de trás com olhos arregalados, não emitiam um único som. Tenho certeza que pensavam.

Como não encontrava retorno e com as graças de todos os anjos nenhuma placa, entrei no Fundão (UFRJ) para ver se tinha algum aluno que pudesse me orientar como fazer. Em troca daria uma carona.

Tenho a impressão que eles pressentiram a roubada que iriam se meter. Não havia um único.

Retornei à Av. Brasil direção São Paulo. A duas continuavam mudas.
Nessa altura já eram 5 da tarde.

Com a gentileza de um motorista de táxi conseguir fazer o retorno antes de chegar à São Paulo.
Caí na Av. Brasil em direção ao Rio.
Aliviada vi passar por mim a Fundação Osvaldo Cruz. Estava finalmente no caminho certo.
Mas o problema foi que no final havia uma placa.

Eu obediente que sou segui a placa. Virei pro lado que ela mandou e em vez de sair na Praça da Bandeira subi o elevado da Paulo de Frontin. Não há retorno lá!!!!!!!!
Eram 6 da tarde e o engarrafamento descomunal.

As duas permaneciam caladas, mas tenho certeza que os pensamentos gritavam.

Entrei no túnel Rebouças por volta das 7 da noite. Saí na Lagoa Rodrigo de Freitas e não olhando paras as placas consegui retornar.

Finalmente, às 8 da noite, deixei a mãe e a filha da minha empregada na Praça da Bandeira.
Mas, ainda tinha que voltar pra casa em Jacarepaguá .

Segui em frente como que com antolhos ( para não ver placas) e cheguei ao Grajaú .

Como na época não havia celular, parei na casa da minha mãe para telefonar pro meu marido.
- oi bem, sou eu..
- ONDE VOCÊ ESTÁ?!!!!!
- tô na mamãe...snif...me perdi de novo..
- ANA, NÃO É POSSÍVEL, VOU TE INTERDITAR!!!!

Cheguei em casa às 9 da noite.

Ele naturalmente, não me interditou, e eu continuo me perdendo até hoje

Entre Tropeços





Depois de uma hora de voo, meia hora de táxi, finalmente chego ao hotel.
Lá estava meu marido esperando.
Subimos ao quarto.
Meu marido gentilmente abriu a porta e ops! levei um tropeção no degrau de entrada.

Fui rapidamente ao banheiro e ops! novo tropeção no degrau do banheiro.
Liguei o chuveiro e ops! mais um tropeção no degrau do box. Tropeção pra sair do box também.

Em SP não se pode fumar em lugar algum.
Eu fumante inveterada, fazia umas 2 horas sem fumar, esqueci e acendi um cigarro dentro do quarto.
O medo do springer disparar a jogar água no meu cabelo me fez correr para a varanda e ops! tropeção no degrau da varanda.

Caramba! num quarto de 30 metros quadrados, em menos de meia hora, levei um tropeção por metro quadrado.

Ou o mundo tá moderno demais pra minha existência ou finalmente vou ter que admitir que preciso usar meus óculos.

O Circo





"Todo mundo vai ao circo, menos eu, menos eu.."
É claro que já fui ao circo!

Eu e meu marido levamos 5 crianças ao circo.
O tempo percorrido da minha casa até o local do circo, foi o mesmo tempo da quantidade de brigas no banco de trás do carro.

Paramos no estacionamento, organizamos as crianças entre nós dois.
Cada um dava a mão pra uma e cada criança dava mão pra outra. E lá fomos nós em direção a entrada.
Antes de conseguirmos chegar, salta na nossa frente um palhaço vendendo pirulito. Senti os braços das crianças ao redor das minhas pernas. Expliquei que era apenas um moço vestido assim, que vendia pirulitos para ajudar na renda do circo e blá blá blá.
Mas na verdade pensava era assim: - Que palhaçada esse palhaço vir assustar a gente!!!

Compramos uma frisa bem na beirada do picadeiro. Lugar maneiro pra ver de pertinho toda a função.

Depois de muitos "quero bala", "compra algodão doce", "cadê o amendoim", todas as luzes se apagaram. Silêncio total.
Bem baixinho começamos a ouvir um som de um rolo de macarrão, que aumentou para um som de um rolo compressor, que aumentou para um som de um gigante de skate. Todas as luzes se acenderam e bem em frente a nós havia um ENORME guindaste travestido de dragão que abriu a boca e cuspiu fogo.
Cuspiu fogo nas minhas crianças!!!!!!

Como eu ia explicar pra eles que aquilo era só um espetáculo, se até eu gritava?!!!!!
Bom, a partir daí até o final do primeiro ato o menor deles, que tinha 2 anos, ficou gritando a cada pequeno, médio ou grande barulho.

Resolvemos ir embora nesse momento para o contentamento de todos.
Portanto, volto para a música do início:" Todo mundo vai ao circo, menos eu , menos eu"
Mas não vou MERMO!!!!!!!

Como assim?



Quanta vezes já ouvi das minhas crianças, quando ainda eram crianças , porque?
Por que o céu está rosa?
Por que o gato mia?
Por que de dia é claro?
Por que de noite é escuro?
Mostra que a criança tem curiosidade e interesse por aprender e conhecer coisas novas.
No início é uma gracinha. No final do primeiro ano há uma certa irritação.
Três anos depois, enlouquecedor.
Mas tudo bem, resta a nós mais velhos ter a paciência de responder os porquês deles.
Com a minha neta foi diferente.
Tudo com neta é diferente.
Ela não perguntava porque. Perguntava : - Como assim?
Como assim, digo eu!!!!
Como assim que minha neta não pergunta porque?
Nesse caso eu não sei responder, nem o como assim e muito menos o porquê.

O vento que entortou a flor



- Mas, mãe porquê esse jarro está tão torto?
- Não sei filho, porque está.
Era assim sempre que um dos meu filhos falava sobre o quadro Flores do Campo.
Um dia, esse filho me levou ao Museu de Arte Naif. Ele queria que eu tivesse aula de artes.
Aproveitei e levei esse e outros quadros para mostrá-los no museu ( não sabia exatamente como funcionava a dinâmica de um museu).
Ninguém me atendeu a não ser a Profª. Helena.
Ela olhou meu trabalho, disse que eu era uma pintora naif e orientou o caminho que deveria seguir.
Meu filho insistiu : - Mas ela não tem que fazer um curso?
Profª Helena: - De modo algum, não deixe ela estudar técnicas! Ela pinta com o coração e poderá perder a essência.
Meu filho continuou insistindo: - Então porque ela pintou esse quadro torto?
Profª Helena : - Porque ela tem o dom !

Gravatas



Exposição no Club Militar traz uma certa angustia.
Uma sala em homenagem e com fotos de todos ex-presidentes militares intimida e irrita.
Mas o espaço, na época, me pareceu uma oportunidade boa.
Afinal o Clube Militar tem sede no centro da cidade. Teoricamente haveria muita gente visitando.
Enfim, montei uma bela exposição.
Os executivos que almoçavam todos os dias se mostravam totalmente desinteressados em relação as artes.
Poucas visitas. Nenhum interesse.
Fiquei um mês, todos os dias, sentada numa cadeira esperando que algum me contemplasse com um afago.
Uma das únicas pessoas que entrou , percorreu o salão na velocidade máxima.
Ao sair me disse:
-" Cada um gosta de uma gravata diferente" !
Não sei o que isso significa, mas acho que ele não gostou

Todo Sentimento



Vender uma obra é sempre difícil, pra mim pelo menos.
Tenho imensa dificuldade em dar preço para algo que faço com a minha emoção.
A impressão é que estou trocando o que é prazer por um punhado de moeda.

Fiz uma exposição no Hotel Sheraton em 2009 e recebi logo no primeiro dia a proposta de compra de um dos quadros.
O comprador era um inglês que tinha várias casas espalhadas pelos continentes.
Me encontrei com ele no dia seguinte, munida de toda documentação necessária para o quadro sair do país sem problemas.

O constrangimento começou logo do início com o meu inglês macarrônico. Precisei naturalmente, de um intérprete.
Entre tropeços fomos nos entendendo.

O gringo começou negociando preço.Constrangimento total. Olha eu negociando os meus sentimentos!
Mas vá lá! Foi!

No final da nossa conversa ele me disse algo mais ou menos assim:
- Não fui eu que me apaixonei pelo quadro, foi o quadro que se apaixonou por mim.

Me desfiz desse quadro trazendo para mim todo o sentimento do diálogo entre o senhor inglês e a minha obra.



A necessidade de expressão esteve sempre presente na minha vida.
Desde bem nova gostava muito de desenhar cantar e escrever.
De um modo geral contava sempre algo que tinha visto ou sentido.

A família de artistas de certa forma propiciava essas expressões.
A inibição de se deixar comparar com quantidade muito grande de pessoas talentosas e tão próximas, represou esse desejo por alguns anos. Porém, ele é tão grande que me fez passar por cima de todas as questões.
A pintura ressurgiu. Tão intensa, que hoje é difícil não realizá-la.

Pintar um quadro começa sempre com a tela vazia.
Eu não consigo ver ali, apenas um elemento. Me vem sempre um sentimento. Difícil é saber qual é.
O coração acelera, o estômago dá uma cambalhota, um calor invade o corpo. Sinto cheiros, músicas, tudo se mistura.
Uma atração imensa pelo meu canto (cavalete, tela, tintas, pincéis).
As sensações são rápidas.
Penso nas cores. Não no exato lugar onde vão ficar, mas sim como uma sinfonia executada por uma orquestra.
Cada qual está no seu lugar, mas todas se integram.
Nada disso é claro como estou dizendo nesse momento.
Foi preciso pensar um pouco.
Mas, o fato é : impossível deixar essa tela em branco!!!!

Esse processo de criação, às vezes é aflito, outras de grande excitação, outras sereno. Pode acontecer lento, com estudo de formas, geralmente num caderno qualquer.
Ou então num piscar de olhos. Rápido e totalmente pronto.

Quando sento no cavalete e começo a riscar a tela vem então a segunda etapa. Essa já com tudo fotografado em minha mente .
Ao longo da pintura (já com as tintas), algumas dificuldades vão aparecendo.
Divirto-me muito com isso.
Resolvê-las me dá grande prazer.
Não resolvê-las me aborrece.
Faz-me pensar e tentar não desistir dessa ideia / sensação / emoção. Porque um outro quadro, será outro e não esse.

Considerar um quadro pronto é um processo difícil.
Parece que falta sempre alguma coisa.
A fotografia que tenho em mente nem sempre se realiza na tela.

De um modo geral essas pinturas tomam a sua própria forma e mesmo quando não as considero prontas elas se impõem.
A imposição se dá de forma clara: não adianta mexer, riscar, mudar cores, colocar novos elementos.
Ela não melhora ou piora, apenas reina absoluta.

É preciso seguir em frente e partir para novas sensações.

Namoro na Janela



Trabalhou na minha casa uma senhora chamada Carmelita por 21 anos.
Era paraibana, analfabeta com cinco filhos que criou sozinha.
Não tinha saber, mas tinha sabedoria por demais.

Dos 5 filhos perdeu o mais novo assassinado.
Para preencher esse vazio, adotou, com 2 dias de vida, um menino negro como a noite chamado Dudu.

Nas minhas pinturas fiz um quadro de um casal namorando na janela. Ele moreno e ela negra.
Toda vez que Carmelita olhava o quadro dizia: - Mas que neguinha metida à besta!!! olha a unha dela!!! olha o vestido dela!!! muito metida!!! ahhh mas o homem, não: esse sim !! é distinto, bem apessoado. deve ser pernambucano!!! odeio essa macaca!!!
E eu, perplexa perguntava: Mas Carmelita, como assim? E o Dudu? é negro também?
E ela então me respondia: - Mas o Dudu é meu!

Fiquei pensando que se aquele quadro mexia com os instintos mais arraigados na história daquela mulher, deveria também mexer com a emoção das pessoas.

Resolvi inscrevê-lo numa exposição.
Acho que acertei, ganhei com esse quadro o Prêmio Aquisição da Bienal Naif de Piracicaba de 2004

Copas da Vida




A mais remota lembrança que tenho de uma Copa do Mundo é a de 1958.
Não havia televisão.
A transmissão era feita pelo rádio.
Tinha eu, 7 anos.
Meu pai e meu padrinho, com o radinho de pilha no centro da mesa. Uma cerveja ao lado e muito nervosismo na torcida pela vitória da seleção.
O único interesse que tive, foi na alegria que contagiava a todos. A superstição dominava o ambiente. Se alguém passava pela sala e ia ao quarto, uma boa jogada da seleção impedia a volta para sala.
Tudo, para uma menina de 7 anos, era muito novo.

Em 1970, já com 19 anos, assistia pela primeira vez, uma transmissão ao vivo, pela televisão.
Reunião de amigos, torcida com camisa da seleção e uma grande farra depois de cada jogo.
A vitória da Copa do Mundo desse ano foi comemorada com muita festa.

Tudo para uma moça de 19 anos era muito novo.

Em 1974, com 23 anos e casamento marcado para julho (assim que a Copa acabasse), meu pai resolveu assistir à Copa na Alemanha.
Vi pela primeira vez a transmissão ao vivo e em cores.
Mas será que papai ia chegar à tempo de entrar comigo na igreja?
Bom, o Brasil foi eliminado e felizmente meu pai chegou.

Tudo para uma noiva de 23 anos era muito novo.

Em 1978, com 27 anos, casada e com dois filhos, assisti à Copa do Mundo junto com minha família.
Ensinar a meus filhos o que era uma Copa do Mundo e a torcer pelo Brasil, foi uma tarefa agradável.
Mostrou à mim e a meu marido a beleza da reunião da família, tornando esse valor mais amplo.

Tudo, para uma mãe de 27 anos, era muito novo.

De lá até hoje tive mais um filho (hoje com 31 anos). Nasceu uma linda neta, hoje com 13 anos. Assisti a 8 Copas do Mundo. Vi o Brasil ser pentacampeão e, tudo para uma senhora de 63 anos, continua muito novo.

Essa curiosidade pelo novo é que me inspira a contar todas as histórias que vejo, vi e vivi através de meus quadros.

E vai ter Copa no Brasil e acho isso fantástico!

Politicamente Incorreto



 
Entre 1940 e 1950, meu avô e meu pai caçavam numa mata no Estado do RJ ( chamada Tinguá). Na época isso não era politicamente incorreto.
Nessas andanças, meu avô chegou a uma cidadezinha entre a montanha e o mar chamada Ibicuí.
Adorou e começou a se hospedar na casa de uma senhora onde comia e bebia. Era muito baratinho.
Quando nasci já existia passar temporadas em Ibicuí.
Durante alguns anos, nessa casa eu ficava. A casa da Dona Chicá.
Depois disso, meu avô comprou uma casa enorme lá.
Todas minhas férias até os 14 anos passei nessa cidade.
Tenho a impressão que minhas memórias estão ainda em Ibicuí.
Aprendi tudo que sei.
Andar descalça enterrando os dedinhos na lama, subir na bicicleta e pedalar sem medo, nadar e mergulhar, escalar o morro da igreja e descer escorregando de bumbum, caminhar na linha do trem e correr quando ouvia o barulho nos trilhos, reconhecer flores como a maria sem vergonha e o matinho dorminhoco (a gente toca e ele fecha), namorar na ponte.
Tinha um céu tão estrelado que nunca vi igual!
Nessa época só se chegava a Ibicuí através do trem ( não existiam estradas). Passávamos a semana só com mamãe e meu pai vinha às sextas feira no trem das 10 da noite.
Íamos pegá-lo e marcávamos com nossos amigos um encontro na jaqueira que ficava perto da estação. Essa jaqueira todos conheciam e era um ponto de encontro dos que chegavam à cidade.
Hoje, já se vai até Ibicuí através da Estrada Rio / Santos. A ordem é a seguinte : ...Ibicuí, Mangaratiba, Angra dos Reis, Parati......Santos.
Em 1989, eu e meu marido alugamos uma linda casa à beira mar. Levamos os 3 meninos para conhecer e curtir tudo que curtimos na nossa adolescência.
Os três detestaram. Foi a última vez que estive em Ibicuí.
O que é bom pra gente não é necessariamente bom pros outros.

Eu fico com a memória.

Poucas Certezas

 
 
Fui visitar meu afilhado alguns dias atrás.
Passei tarde agradável conversando com meu irmão e cunhada.
Falamos sobre a vida planos e sonhos saboreando um café fresquinho.

Minha saída foi estratégica por volta das 5 horas da tarde.
Queria pegar o metrô antes do horário enlouquecedor.
Consegui fazer isso exatamente às 5:30 na estação da Praça Saens Penna.

Logo que o metrô saiu, comecei a sentir um calor insuportável, sufocante até.
Além disso, o trem parava a cada 500 metros.
Pensei cá com meus botões: o trânsito deve está terrível mesmo, porque até aqui em baixo tem engarrafamento.

Na altura da Central, um senhor sentou ao meu lado e falou muito do calor. Do absurdo de ninguém reclamar.
Comecei a ficar nervosa.
O trem parando, o calor, o povo começando a gritar e eu lá embaixo naquele buraco.

Antes um pouquinho da estação Arco Verde, o trem quicava, o senhor reclamava, o calor aumentava, o povo gritava mais alto.

Mas o pior estava por vir, o vagão encheu de fumaça com cheiro de inseticida e aí o povo gritou e gritou muito.

Parando na estação, abriram-se as portas e eu rápida pulei para fora do vagão.
Ajudei uma senhorinha e fiquei meio segundo olhando em volta.
Uma mocinha perguntou se iam devolver o dinheiro dela. Fiquei espantada com essa preocupação quando reparei na fumaça tomando conta de todo aquele buraco. Buraco esse, calculei, ser proteção para a III Guerra Mundial.
Sim, pois nunca vi uma estação de metrô tão grande e tão profunda quanto aquela.
Minha intenção foi sair o mais rápido que conseguisse.
Andando ligeiro (me esquivando dos seguranças, que corriam e gritavam que nem baratas tontas) vi uma escada que me deu a certeza (de tão íngreme que era), vai me levar pro céu.

Passei a primeira marcha do meu pé, engatei a segunda e cheguei até a quinta num piscar de olhos.
A única coisa que pensava era sair dali.
Optei pela escada rolante. Afinal minhas pernas estavam bambas.
Graças a minha velocidade, alcancei em primeiro lugar a linha de chegada: a rua Toneleros.
Como prêmio o ar puro, o céu, a natureza.
Mas se alguém pensa que isso me satisfez engana-se.
Como já tinha engrenado a quinta marcha, aproveitei a velocidade e voei 10 quarteirões a pé sem parar até chegar em casa.
Não me perguntem o porque. Eu também não sei.

Sobrou-me dessa aventura a certeza que nos veículos de comunicação nada do que acontece no metrô é noticiado.
Meus dedinhos dos pés sofrem de profunda tristeza e câimbra quando ando rápido.
Naquele buraco da estação Arco Verde existe um mundo paralelo.